domingo, 27 de março de 2016

CONTOS



Ametista
            
Quando abriu os olhos descobriu-se dentro de uma manjedoura de luzes púrpuras. O mundo era uma ametista que brilhava, cores nascidas dentro da pedra oca.
Os olhos do menino fecharam-se para encontrar verde escuro e azul noite. Indeciso, optou por abri-los. Conduzido pela maré de uma sombra-sonho, esbarrou nos anteparos da realidade. Sentiu o branco da madeira laqueada de sua cama, depois deixou de entender as camadas de profundidade do móbile pendurado no teto.
Os brinquedos fosforescentes espalhados pelo quarto eram sobras de um dia que nunca conseguira ver nascer. Deitado, acompanhava-os até a proximidade de sua cama, não se atrevia a olhar embaixo dela.
Era provavelmente por ali que nasciam e morriam os escuros, e todas as criaturas feias que dele brotavam. Com esses seres fizera um acordo, procuraria não se mexer muito na cama e não fazer barulho depois que a luz fosse apagada.

        Em troca eles nunca apareceriam. Sobre o tapete espalhava-se o dia e as pequenas sujeiras exploradas com a ponta do dedo indicador, as imperfeições da parede eram percebidas com as duas mãos, as mesmas, que agora, também sentiam a parede metalizada de um vagão de metrô.
Quando o vagão abandona a noite subterrânea e mergulha nas sobras avermelhadas de um dia cansado, o homem, menino, estranha as luzes derramadas sobre os bancos estofados, espalhadas por cabelos longos e rostos cansados.
Os olhos incomodados encontram triângulos roxos antes de voltarem ao cotidiano, camadas de gente disputam espaços, espaços procuram ausências, o crepúsculo floresce dentro do movimento, as crenças cruzam certezas derretidas no lamaçal das dúvidas. Indeciso, o vagão transforma rostos e corpos dos passageiros.
Quando a porta se fecha e uma voz anuncia a próxima estação, eu, aquele que foi, é, e muda, percebe, percebo, uma mancha de sol avançando pelo rosto de uma moça, como ainda não atingiu os olhos ela não a percebe, somente eu, me encolho, viro de lado, não quero vê-la fechando os olhos por causa do sol. Mentira.

        Não é só por isso que desviei o olhar, é porque a moça tem um brilho nos olhos, que se espalha pela cabeça e corpo, e que já não consigo encontrar em mim. Há um peso que flutua pelos ares e parece emendar os instantes, e do qual, talvez esteja enganado, parece que me afasto a cada manhã.
É como se a cúpula côncava do planetário começasse a misturar concreto rachado à constelação de Órion. Para fugir das luzes descubro chicletes pisados no chão emborrachado. Sentado, cutuco com a ponta do dedo, experimentando a consistência. Das veias, ligamentos e intestino, emana uma rigidez que não parece minha. É o mundo envelhecendo.
No caminho de casa está o grande rio cinza-esverdeado, camadas de cores e movimento. O animal primitivo não se permite emoções, e com sua boca-primavera, engole as minhas.

        Aceito um final de tarde sendo um rio. Agruras e ansiedades são galhos secos carregados de maneira quase anônima.
Minhas mãos têm as cores de meus brinquedos, e agora, eles são correnteza. A paz vinda das águas só é interrompida, quando uma parte de meu raciocínio decide perguntar o que existe sob aquela superfície tranquila das águas.
Eu sou dois, um que permanece em paz, e o outro, que inventaria tipos de peixes perigosos que devoram carne branca como se fosse líquida, troncos apodrecidos, que com uma batida no lugar correto te mandam direto para debaixo de uma lápide caiada de branco.
Onde novamente haverá o direito de sonhar o que sonham as crianças pequenas.
Enquanto piso as pedras ásperas, desconfio de todas as realidades desveladas pelos meus sentidos. Engulo a noite que chega raspando retinas, espalhando cheiro de chuva. A doçura do céu ametista é rasgada por um instante silencioso de brilho.

       O estrondo escuro chega um segundo atrasado. Gotas gordas espantam passarinhos, por todos os cantos armam-se pequenas tendas escuras, a humanidade persegue suas marquises. Descubro refúgio cinzento, daqui observo como são perecíveis as marcas secas deixadas pelos pneus.
Os rostos misturam resignação com pontinhas de esperança. Desconhecidos descobrem histórias em comum e formam uma parede de proteção que me envolve por todos os lados. Atrás de mim uma loja de armarinhos.
Nas prateleiras centenas de novelos de todas as cores possíveis, que distorcidas pela água que escorre pelos vidros, constroem um movimento colorido que contrasta com o cheiro de preocupação daqueles que não tiram os olhos dos relógios.
Tenho vinte centímetros livres ao meu redor, o suficiente para perceber meus pés perfeitamente protegidos das poças d’água. Em frente ao grupo de homens e mulheres que me envolvem há uma pequena árvore recentemente plantada, seu caule fino está amarrado a uma estaca de madeira.

       A planta recebe toda a água que escorre da marquise. Seu tronco balança, as folhas parecem buquês sendo oferecidos, a dança da plantinha se assemelha a de um palhaço louco, e isso me agrada.
Todos meus vizinhos usam sobretudos escuros, cachecóis e luvas. Sinto o calor que vem em minha direção. Os carretéis de lã giram e a impressão que me dá é que daquela vitrine pode sair um batalhão de pessoas felizes que contaminarão o mundo inteiro com sua felicidade. Fecho os olhos para só escutar o barulho da chuva.

Meu refúgio é perfeito, torço para que a chuva demore a parar, e para que as cores que vem da vitrine possam dançar pelo mundo, vestidas com as formas que tinham meus brinquedos quando dormiam no escuro.

                                                                   
                                                   
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* Conto em primeira pessoa
Eu.
Dia.
O naufrágio não aconteceu de verdade.
As ondas eram feitas de cobertores.
Preguiça.
Esticar braços e pernas.
O gelado da lajota, chinelos.
Acender a luz, olhos incomodados.
Espelho? Não.
A manhã em sua infância.
Vapores sonoros do dia.
O sapato abafado pelo tapete.
O café molhando a xícara.
O verde da grama transformado em asfalto cinzento.
O ribeirão de carros desaguando em um mar de luzes vermelhas e fumaça.
O tempo remando contra a maré de vontades.
As rádios vendendo alegrias.
Buzina. Panfleto. Motocicletas. Placas: Compre aqui. Seja prudente.
Calor.
O tédio nos espelhos retrovisores.
O que separa os carros é a cidade.
Mistura de concreto, memória e desejo.
Ela borrifa sobre cada habitante seu extrato de cotidiano.
O que faz com que adormeçam em momentos indevidos e alegrem-se no por do sol. Também transforma o gosto da comida repetitiva em agradável.
Bocejo.
O mar avança.
Carros e motocicletas ansiosos por seus destinos individuais.
O outro é apenas um obstáculo que atrapalha a realização de seu desejo.
O nervosismo é conduzido pelo vento e inalado pelos motoristas.
Há mais uma substância flutuando pelos ares e invadindo janelas de motoristas.
É inodora, insípida, mas responsável pelas primeiras alegrias da manhã.
A inabalável certeza de que o novo dia trará consigo uma surpresa agradável.
O canino direito exposto.
Olhos atentos aos óculos escuros fêmea passando ao lado.
Acelera sua virilidade, desvia dois para-choques, a velocidade desenrola a cidade.
Compete com capacetes pela primazia da curva.
A buzina alheia informa-o que venceu.
Distorce um volante que demonstra seus limites.
O grito azedo dos pneus.
Descobre o sol tentando refletir no capô marrom.
“Blue skies, nothing but blue skies...” aumenta o volume, baixa o vidro.
Uma mão no volante, a outra cofiando a barba por fazer.
Os olhos encontram-se no retrovisor.
O açúcar da velocidade espalhado pelo sangue.
Grandes prédios espelhados espalhando reflexos.
Tiros de imagens.
O horizonte pedindo para acontecer sob os pneus.
As vibrações da vida transformadas em carroceria agitada pelas imperfeições da pista. Lábios e língua lutando por espaço.
Indicador encostando na base do polegar.
Freada forte, deslizando nas marcas escuras de borracha.
Ódio fraco, pressa. Luz verde: liberdade, desvia dois carros, o início da grande estrada. Acelera tudo que pode, braço esquerdo pendurado para fora.
O ponteiro renasce até a posição vertical, depois vai lentamente baixando.
A primeira curva inclina o carro até o limite do capotamento.
Na reta o ponteiro treme, indicando seu limite de forças.
O bem estar faz com que feche os olhos por dois segundos.
Ultrapassa todos, saltando da esquerda para a direita.
Uma grande descida aumenta a velocidade, o ponteiro encosta no pino limitador.
Ele sorri.
Desliga o rádio para ouvir o barulho do motor.
A sinfonia é interrompida por uma redução de marcha. Freia.
Do acostamento vê passarem todos os carros que ultrapassou.
Desliga o motor. Mantém as mãos no volante. A testa pontilhada de suores.
O para-brisa de garoa. O silêncio é rasgado pelo som de asfalto molhado.
A respiração arfante acalma-se.
Os vidros embaçados suavizam as formas. Eu, assistindo-me como a um estranho. Reconhecendo-me em situação alheia a mim.
Não era ele quem acelerava. Era eu. Mas talvez ele achasse o mesmo.
Meus olhos tem o azul do céu, visto por alguém que está se afogando.
Os dentes são difíceis de serem reconhecidos.
Sobras de uma máquina evolutiva.
A sombra negra espalha suas promessas de poços, que também são ameaças.
A cada passo o risco da queda. A imobilidade, certeza do abismo.
Rotina como tábua de salvação. Café da manhã, trabalho, sono.
Preciso limpar esses vidros. É perigoso parar no acostamento.
Equilíbrio. Ele liga o carro e entra pela contramão na mesma rodovia que o levou até ali. Acelera sem considerar qualquer possibilidade de estar errado.
Luzes altas e buzinas fazem parte da paisagem.
O ruído opaco de um carro capotando. Prossegue. Cheio de si.
Acelerando rumo ao coração da cidade. Três luzes inúteis dos sinais de trânsito.
Por seu rosto escorre a aura refletida da máquina.
No branco leitoso dos olhos o mistério encravado.
Sobre a boca paira a certeza do beijo da amante.
No retrovisor as luzes do carro de polícia.
O caminhão fugitivo espalha a carga pela pista.
O motociclista derrama a vida no asfalto.
O helicóptero transmite a trama ao vivo.
Pela televisão, eles, os outros, assistem quando o carro invade a igreja barroca.
Em alta velocidade passou por cima dos bancos atingindo pessoas que rezavam.
Os gritos só foram se acalmando quando chegaram os bombeiros e a polícia.
Procuravam vítimas,encontraram duas velhas desacordadas.
O motorista do carro não parecia muito ferido, e de sua posição de motorista observa. Repara na destruição das estátuas, das pinturas, do altar.
Ele não expressava sentimentos.
Também não esperava que viessem retirá-lo do carro.
As equipes de televisão não demoraram a chegar.
Foi quando todos que estavam na igreja começaram a ouvir a palavra “mortos”.
Alguns gritos foram silenciados por mãos enluvadas conduzindo ombros para fora.
O acidente destruiu uma parede da igreja, a chuva entra em gotas respeitosas.
As câmeras multiplicam imagens encobrindo dores com tarjas vermelhas.
A cabeça de um santo jaz esquecida sob escombros.
A mil quilômetros de distância, eu, assisto a cena narrada por um repórter.
As luzes artificiais confundem restos de arte com blocos mortos de tijolos.
Percebo quando os bombeiros arrancam a porta do carro acidentado.
De dentro, cambaleante, sai, ele, um homem alheio a todo o resto.

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